RESOLUÇÃO DE CONFLITOS, JUSTIÇA RESTAURATIVA E A ÉTICA DA ALTERIDADE/DIÁLOGO
Prof. Marcelo Pelizzoli (UFPE - Dep. de Filosofia)
Introdução
Estimado leitor,
Este texto é fruto de reflexão em andamento, e busca de modo filosófico encontrar fundamentos
para uma renovada visão de justiça, contemplando em especial - mas não unicamente - a chamada Justiça Restaurativa, no que isso tem de amplo. Busco em fontes inspiradoras de grande sabedoria mundial iluminar esses passos. Tais fontes são, como se pode ver pela bibliografia final, a ética da alteridade (Levinas em especial), a Comunicação Não-Violenta (na figura de M. Rosemberg e D. Barter) bem como a Cultura de Paz, a hermenêutica com inspiração em Gadamer; a essência ética do cristianismo e do budismo, algo da análise psicológica da Sombra na moral, e também da crítica ecológica e socialista ao Direito Liberal Moderno. Não
podemos exigir que um operador do Direito seja escolado em filosofia, mas que o seja na ética, na visão social e na sensibilidade ao seu tempo. Nesta área, é necessário ser tão objetivo quanto aberto. Aberto significa igualmente o aspecto (auto)crítico: por exemplo, poder perguntar o que representou o modelo sacrificial e punitivo nas sociedades conservadoras; e, mais tarde, nas sociedades liberais perpassadas pela Lex dura lex. No mesmo barco, pagam a conta os vencidos: vae victis, ai, ai das vítimas ! Nitidamente, temos hoje um aparato jurídico e policial, dentro da garantia de Estado distanciada da realização da res publica efetiva, e uma sociedade que não encontra boa realização de seus vínculos e conflitos no Estado; e, por conseguinte, temos como
que um Estado paralelo privado com aparatos de segurança, com seus lobbies poderosos; e temos um poder paralelo de grupos, como no tráfico por exemplo. Eles se tornam auto-justificáveis e são aparelhos defensivos.
Defensivos de quem e como ? Por que é tão necessário defender-se assim ? Tratar-se-á pois, em termos de Justiça e legislação, de estabelecer novas leis, mais rígidas ? Muitas vezes me pergunto se não estamos construindo, na idéia da cultura do medo, construindo empoderamentos reacionários, no sentido de recrudescer a repressão, atuando apenas na ponta do iceberg. Daí frases neofascistas a brotar: “ladrão tem que morrer; viva a pena de morte; pena máxima; prostituta vagabunda; era homossexual mesmo; morreu, mas tinha passagem na
polícia mesmo; é bom castigo pra aprender; grupo de extermínio; vingança...”; e assim segue a grosseira ignorância.
Este texto é escrito num tempo de urgências, e tenta unir fundamentação filosófica, no que isso significa pensar-cuidar, no que está por trás dos fenômenos sociais-institucionais relativos à questão Justiça e Ética, como pensamento crítico e engajado, buscando estimular o novo tempo, o que temos chamado de novo paradigma : restaurativo, da alteridade, ecológico, holístico, bioético, complexo.
Qual o sentido da Filosofia neste contexto? Eis sua força: pauta-se originalmente na pergunta, e no perguntador.
Visa não a solução final e o controle em primeiro lugar, ao modo de um objeto fixado, mas a abertura de horizontes de compreensão em torno de questões intercambiáveis, remetendo aos fundamentos orientadores.
Procura abarcar o sentido dos nossos jogos da vida, dos processos de felicidade e sofrimento e das significações vitais por trás das aparências. Na maioria das vezes, a não compreensão das dimensões (sistêmicas, radicais, ontológicas (de essência), históricas...) de um problema contamina toda e qualquer direção de resolução. Exemplo: se temos uma noção de humano como primordialmente agressividade-raiva, e então de justiça como algo punitivorepressivo,
dificilmente vamos entender a procedência de processos de mediação baseada em visões sociais da cultura de paz. Por isso, entender o Saber (ciências em geral) como processo de resposta infinita e errante às perguntas da existência humana, interhumana e ambiental, me permite chegar mais próximo ao perguntador e à sua dor, às suas inquietações. No fundo, trata-se de quem somos e como vivemos ? Sócrates, o pai da filosofia, o homem do dia-logos, nos dá a pista, quando diz: “conhece-te a ti mesmo”. Ou ainda: “Antes de buscar calar a boca de meus críticos, procuro tornar-me melhor”.
A Filosofia pode fazer perguntas radicais e simples, como as crianças, que desconcertam: de quê estamos falando propriamente ? Fala-se de objetos fixos e problemas específicos, mas, o que temos como significações primeiras, o que está pesando, na real ? Que modelo de pessoa tenho na cabeça, de mundo, de sociedade, de natureza, de história, de ética, de justiça ? Como vejo o outro e o conflito ? O que eu quero da vida ? Uma coisa está ligada à outra; precisamos apreciar algo em conjunto...
1. Visão de conjunto e contexto de crise
Se queremos entender melhor do que se trata com Justiça, precisamos pensar o momento histórico-cultural vivido, num mundo que foi, a fórceps por vezes, se globalizando. A visão de contexto/conjunto aponta para uma crise de paradigma, do que nenhuma ciência ou prática institucionalizada escapou; e é justamente nesta seara pantanosa e ao mesmo tempo fértil que surgem as formas alternativas dentro de uma possível cultura de paz.
Na entrada do séc. XX temos uma ruptura epistemológica séria, dentro do Saber e chegando às bases civilizacionais como um todo. Isso significa que os modelos compreensivos de mundo, por exemplo, de matéria como algo sólido atomizado, de pessoa individual sem inconsciente, de fatos objetivos no mundo externo independentes do observador, de dimensão fragmentária e simplificadora da vida, da divisão homem-natureza, entre outros, estes modelos imperantes começam a ruir. Não apenas pelo surgimento de novas teorias mais apuradas, mas devido aos efeitos danosos desta epistemologia, que toca e molda imediatamente a concepção estética (sensibilidade), ontológica (o ser das coisas), sociológica e ética em especial, valores que seguimos. Em termos mais técnicos, trata-se de um questionamento radical do positivismo e do cartesianismo . Nossa cultura - e então o Direito - é bastante contaminada com estas cosmovisões. Em nome de uma pretensa objetividade factual, de uma visão positivista dos conflitos sociais como fatos simples passíveis de legislação simplificadora, temos por exemplo sujeitos de deveres e direitos destacados de seus contextos sociais, emocionais, enfim, ambientais. Por isso, está em xeque o modelo do Direito Liberal vindo da Modernidade, a noção de Justiça, de imputabilidade individual e assim por diante. Está em jogo o fundamento mítico da Justiça institucionalizada, como veremos.
Como superar tais limitações/contaminações? Neste contexto surgem teorias e movimentos novos, como Direitos Humanos, Direitos Difusos, Direito alternativo anti-positivista, Hermenêutica Jurídica, e a Justiça Restaurativa, uma de nossas inspirações nesta temática aqui exposta. Em todo caso, expõe-se o ferimento: o interregno e impasse que habita o Direito enquanto Ciência Social e Humana diante da cooptação do mesmo pelo estatuto epistemológico
(cartesiano) das Ciências Naturais - pautadas na abordagem positivista. Nesta abordagem, por exemplo, não se entrou nos méritos das condições materiais concretas dos parceiros em conflito. Neste modelo de Direito há uma ênfase legal abstrata, bem como um legalismo algo religioso, como garantidor de normas que partem de uma desigualdade gritante; daí ser chamado por alguns de Direito Burguês. Há um acordo implícito entre os bem incluídos para o seu funcionamento; uma vez posto em marcha, o trem custa a parar, em nome mesmo de pretensa
democracia e de um Estado de Direito. Aí entra a hipocrisia oficial e do poder privado. Vamos à prática: um “semterra” necessitado ocupa uma grande propriedade ociosa. Legalmente tem sido visto como um crime, no entanto, moralmente sabemos todos que não é, pois nesta condição, na verdade, trata-se de justiça social. Ou ainda: por que o “ladrão de galinha” é condenado e o “ladrão engravatado” é solto? O próprio cristianismo – que contribuiu para a dicotomia Bem X Mal e a legitimação do “poder terreno” - seja na Bíblia, seja na Doutrina Social da Igreja
Católica por exemplo, contempla uma outra noção de justiça, quando institui o modelo do perdão das dívidas desde o Antigo Testamento, ou do acolhimento material dos pobres, ou de Jesus quando diz que quem tem fome pode pegar alimento onde sobra; a Doutrina Social considera lícito certas condições de “furto”. Neste sentido, quando um “menino de rua” assalta um rico (e com um pouco mais de dinheiro já se é rico no III Mundo), devemos ter estes aspectos éticos (para além do moralismo) em mente. Quão falsa pode ser a moral vigente!?! As vezes, um ato
imoral ou dito crime toca num fundamento ético mais profundo. Os recursos em comum, mas também o furto é quase tão antigo quanto o homem, e sofreu uma moralização excessiva; hoje podemos pensar sem medo o papel de estabilizador social da própria transgressão, e também o de alarme social. É difícil negar o papel social dos Robin Woods da vida; trata-se sem dúvida de redistribuir empoderamentos, bens, dignidade etc.; é condição essencial para a manutenção social futura. Hoje há condições de compreensão social sistêmica suficiente para apontar que o enriquecimento despreocupado, numa sociedade carente, é muito mais imoral do que certos atos
criminosos dos pobres. Por que não o consideramos ainda crime ? Se temos a dimensão da dívida social implicada no valor, no símbolo dinheiro, poderemos entender que a acumulação de capital significa matar gradativamente de fome, gerar violência. E assim começamos corajosamente a perceber uma das grandes causas da chamada “violência”. Para esses fins deveríamos falar em violência externa, ilícita, e em violência oculta, tornada lícita. Por que achamos que uma é muito pior do que a outra ? Em todo caso, numa cultura de paz, não se trata de defender a violência de uma das partes, e o foco é algo como o processo de restauração do violado, o que não exclui as
reflexões acima, na medida em que não temos uma situação ideal de parceria social, mas desnivelada. Como falar em justiça, justiça restaurativa, de ofensas/danos/crimes prescindindo do contexto social, econômico e sistêmico ??
Por fim, para ilustrar a mudança histórica e a crisis, como ruptura de paradigma, é só olhar para os grandes movimentos contemporâneos: Ecologia, Física quântica e complexidade, Feminismo, Direitos humanos e paz, revoltas socialistas, o advento estrondoso da psicanálise, a retomada da espiritualidade e de práticas alternativas. A arte contemporânea revelou tal mudança de forma sintomática, e para muitos desconstrutora. As visões da alteridade e da Hermenêutica incluem-se aí neste novum, para além certamente do moralismo.
2. Crítica à moral conservadora
Tal crítica que estamos fazendo, aponta para uma verdadeira e corajosa Ética, levando a alteridade a sério, para além da hipocrisia. Em nome da ética às vezes precisamos ser imorais, ir contra hábitos perniciosos considerados normalizados. Moral vem de mos, mores, e indica “costumes”. A gente se acostuma. Muitos costumes podem ser bons, mas muitos podem ser conservadores no sentido de reter hábitos anti-éticos. A gente se acostuma a achar que deve haver ricos garantidos pela lei e pobres mal assistidos; a gente se acostuma a achar normal madame de casaco de pele; a gente se acostuma a ver crianças de rua; a gente se acostuma a achar que cidade é pra encher de carro e poluição de todo tipo; a gente se acostuma a achar que pode usar ainda um pouco mais os recursos naturais a nossa disposição; a gente se acostuma a achar que o ego vem em primeiro lugar e tem mais direitos. A gente se acostuma com apartheids de todo tipo, e, portanto, a não ver o rosto do outro.
A moral conservadora é uma forma de proteção ao frágil ego e sua honra. Protegemo-nos sendo bonzinhos o tempo todo e até de sorriso falso; normais; nos protegemos usando roupas bonitas e bem aceitáveis; nos protegemos zelando pela nossa honra intocável, nossa identidade, nossos pequenos detalhes e nossas posses, coisas todas que em breve os cupins, ferrugens e vermes comerão, como nosso corpo - muitas vezes quando menos esperamos.
E alguns se acostumam a achar, já que vão morrer mesmo, que o sentido da vida é usar e abusar o máximo, numa verdadeira idolatria/egolatria. Perdem a chance de se aquecer no fogo do Amor. Mas não é só isso, propugnam, com sua visão e comportamento, uma sociedade egolátrica, que vai se espraiar nas instituições sociais, e vai pagar alto preço pela não compreensão do sentido ético, sistêmico, de alteridade, e transcendente também, da vida
humana coletiva no planeta. Não é de se admirar que a moral conservadora, e depois seu prolongamento na moral burguesa e liberal, tenham gerado praticamente o seu oposto: a moral niilista. Nada importa, estamos diante do nada, da morte, faço o que quero ! Tudo vale e nada tem valor realmente – minha definição simples do lado negativo da pós-modernidade. A moral niilista é o outro lado da moral conservadora e burguesa. Uma gera a outra.
As duas sofrem da fraqueza egolátrica, idolatria da fraqueza tornada pretensamente força, própria para uma cultura do volátil, do medo, do “amor” objetal e, portanto, da violência. Talvez ela tenha seu sentido de ser neste momento da jornada da evolução humana, onde o ego criança dá os primeiros passos , mas igualmente mostra seus limites e momento de começar a transmutar. As gerações vindouras que já estão aqui em semente, depois de passar por
grandes dores, provavelmente, poderão colher frutos mais maduros deste tempo. O que fica evidente com este desmascaramento da moral conversadora é seu papel defensivo e, paradoxalmente, corroborador da própria violência que quer combater. Em um certo aspecto e momento, vítima e agressor são unidos; eles apenas se encontram em momentos e contextos diferentes, posições diferentes no mesmo jogo circular e sistêmico. Por “sorte” mnha ele está ali no meu lugar... Há uma sombra dentro da moral. Sem digeri-la, só nos resta a hipocrisia...
3. Compreensão chocante e humilde da própria Sombra
“Encontrei o inimigo: e ele está dentro de mim” (Ditado Hindu)
“Atire a primeira pedra quem não tiver pecado” (Jesus)
Há uma tendência primitiva encarnada ainda em nossa sociedade, a mesma que está por trás da instituição Justiça da moral conservadora: o mal tende a ser projetado sempre para fora, seja em nível pessoal, seja numa projeção coletiva (como os judeus no nazismo). A não aceitação de si, da própria alteridade, ou seja, da sombra íntima, do mal e estranheza que nos habita, faz com que não nos percebamos como partícipes de sintomas chamados “ladrões, prostitutas, criminosos, depravados”, que são odiados, mas, não obstante, no fundo, igualmente desejados! Deveras, sintomatizam doenças psico-sociais que nos habitam. Imagine se não tivéssemos espelhos?!
Eis uma belo ditado indiano: “Encontrei o inimigo. Quem é ele? Ele sou EU !” Parece difícil admitir que um foco de violência, uma ponta de iceberg visível, traz à tona o que temos dentro, de raiva, medo, ódio, frustração, violação.
Laudamus te. Não é simples admitir que há um ser maquiavélico dentro de nós, um sujeito inquieto, que se diz consciente e autônomo e livre, e que olha o mundo a partir de si como centro, e tende a desmoronar quando perde o controle da situação. Tudo deve estar em seu mundo, no seu campo de visão, e à mão; a mani-pulare. E assim, desafortunadamente, o mal também está bem dentro. Quando olho o outro com os olhos do julgamento voraz, aquilo que vejo é sempre algo que já tenho em algum grau dentro de mim. Gloriosa interdependência!, que me une ainda mais com a miserabilidade que penso alheia. Felizmente, isso serve também para o bem, o bem que vejo em mim é tal presente nos outros. Admitir isso é atuar na humildade, ou seja, na terra (humus); pôr os pés no chão, aceitando que o outro pode ter qualidades maiores que as minhas, e que eu possa ter hábitos perniciosos iguais ao de quem considero “ladrão”, “prostituta”, “cafajeste” etc. A diferença é uma linha tênue que a qualquer momento – mudança de ambiente – pode se desfazer. É por isso igualmente que podemos dar crédito ao humano mesmo em
situação de degradação econômica, pois na mudança do ambiente, temos outras condições de justiça, de nãoviolência.
Talvez um dos maiores clássicos da literatura mundial seja, além de O Retrato de Dorian Gray, a obra The strange case of Dr. Jackyll and Mr. Hyde, traduzido para o cinema como O médico e o Monstro. O processo de descoberta crua e nua, atuante e criminosa, de uma pessoa de moral conservadora, bem dotada profissional e socialmente, e que começa a ser dominada pela sua própria interioridade – a verdadeira droga é a sua Sombra tenebrosa. Não é o diabo ou uma substância química que o está possuindo, são elementos de sua própria natureza, elementos a ignorar, algo mal trabalhado, e avidamente projetados para fora. Aceitar e trabalhar a própria sombra, sublimando-a entre negativo e positivo – pela arte, pelo trabalho social, pela criatividade, pelo amor – é aspecto fundamental para a manutenção de uma sociedade mais pacífica. Tomar a sombra como ponto de reflexão para a noção de Justiça traz aspectos revolucionários nesta área, pelo menos em termos de uma outra compreensão da ação humana e do quanto estamos presos a todas elas, mesmo as negativas ! Numa visão S–O (sujeito e objeto
separados) simples, pensamos que há um Sujeito da ação que merece ser castigado, com sua imputabilidade pessoal; e há um objeto vitimado, ao acaso, separado do contexto social. Numa visão clássica de ciência, temos sujeitos atomizados e espaços localizados definidos; já numa visão quântica, teríamos fusão de horizontes, interdependência de fatores e não-localidade. Se considero seriamente a Sombra, há necessidade de certa “desmoralização” e certa “des-culpabilização” atomizada dos casos, e uma compreensão da complexidade e interdependência da natureza humana, seu lado sombrio, e o sentido disso na cristalização dos conflitos. Os
processos restaurativos das vítimas – e também dos agressores – podem enriquecer a compreensão da delicadeza (sutilezas) da interioridade humana e sua ligação com a exterioridade social. O simples fato de colocar-se no lugar do outro é um primeiro exercício disto. “Eu provavelmente faria tal coisa em seu lugar”; ou, de modo simples, podemos perguntar sinceramente: quantas vezes pensei em matar alguém, em trata-lo mal, em desejar seu mal, em
corromper, em perversões sexuais ?? A cultura ocidental trilhou um destino de grande repressão da Sombra, e isso é bem visto no tabu a respeito do Mal e das figuras mitológicas reprimidas do diabo; veja-se a grande dicotomia, no maniqueísmo cultural, vigente de modo religioso e também laico, de como tornamos dual a vida. Em tudo, ou bem ou mal; em tudo suspeita de mal. Em tese, não conseguimos trabalhar bem nossos demônios interiores. Eles
acabam sendo projetados nos bodes expiatórios, nos indivíduos a serem sacrificados, nas personificações externas do Mal, no castigo e na fogueira . Os nossos heróis são modelos mitológicos que vencem o mal. Contudo, chegou a hora de amar e transmutar o mal interior e exterior. Só assim temos a cultura de paz, a restauração, a mediação e a Justiça, no sentido profundo destes termos, não mais idealizada, dicotômica, mas ética.
3.1. Crítica à cultura da vingança/punição e da dicotomia absoluta (Bem X Mal): o modelo sacrificial. Crítica ao Fundamento mítico da autoridade na Justiça institucionalizada.
A teoria retributiva acredita que a dor vai justificar (o dano), mas a prática disso é geralmente contraproducente tanto para a vítima quanto para o ofensor. A teoria da justiça restaurativa, por outro lado, argumenta que o que verdadeiramente justifica é reconhecer os danos das vítimas e suas necessidades, combinado com um esforço ativo para encorajar os ofensores a assumirem responsabilidade, corrigirem os erros, e cuidarem das causas de seu comportamento. Por responder a essa necessidade de justificação num jeito positivo, a justiça restaurativa tem o
potencial para aceitar a ambos, vítima e ofensor e para ajudar a ambos a transformarem suas vidas (H. Zehr) “Olho por olho, dente por dente”. A cultura da vingança está ligada a da premiação, reforçando que há os ontologicamente bons, e os ontologicamente ruins, os quais talvez apenas a Matrix possa mudar (quem sabe agora a gente descobre o gen da criminalidade, e o extirpa !). Baseia-se numa visão grosseira da vida, acoplada à violência do Sagrado secularizado, da dicotomia Bem-Mal absoluta. Em tudo o que dissemos antes, trata-se de
criticar um modelo cultural histórico que no fundo elege entes sacrificados, em nome da religião antes, em nome da Justiça agora, do Estado, ou da segurança pública ou privada. O risco coletivo em períodos de tensão e desigualdade social acirra uma cultura da vingança/punição como compensação social e como estabilização de medos. Daí o extremo medo por trás da vontade de matar transgressores. O risco que vivemos é igualmente o de retrocessos em direitos humanos; é o de ditadores que se erguem em nome da disseminação do terror (como a política do governo Bush); é o de recrudescimento do conservadorismo e de certo fascismo, e de polícias paralelas,
grupos de extermínio apoiado por empresários e outros profissionais; ou ainda máfias defensivas. No âmbito privado temos um verdadeiro aparato de controle, com câmeras, vigias, animais, armas de todo tipo, carros blindados, cercas elétricas, ou ainda controle de dados e da vida do “cliente”. O modelo sacrificial tenta a todo custo achar os bodes para sangrar e matar, pretensamente acalmando a raiva-medo no ar. Aqui, é possível ser desresponsabilizado no aspecto inter-humano. Mais uma vez, não há Rosto humano singular e expressivo de fato,
alteridade. Nossa educação foi programada para a competitividade, no trem do mercado. O fato de premiar alguém significa em geral que há outros que foram ultrapassados; que há méritos maiores conforme se segue à risca a regra. Um operador ou um operário padrão. Novamente, que há os bons e os ruins, e isso são aspectos pessoais atomizados, e méritos individuais apenas. Se formos falar nos cursos de Direito, seria um outro livro sombrio a ser escrito, em termos de despreparo humano e teórico, em termos de retórica com falsa substância ética, em termos de legalismo e formalismo, em termos de empoderamento sem retornar ao social como dívida e diaconia os anos de estudo e oportunidades na coisa pública - dada pelo público. Ter como finalidade apenas o dinheiro e o poder e a identidade pessoal a partir da utilidade e representação pública é irônico, mas também lastimável, não? Quando ao fundamento mítico da autoridade e da justiça , cabe apenas brevemente dizer que é antiga a aura sagrada atuante dentro da instituição Justiça. Bons ícones disso são os crucifixos atrás das bancadas, ou dos altares dos juízes; as vestes sagradas nos tribunais, o jurar sobre um livro sagrado, o caráter
religioso da sentença e assim por diante. Em todo caso, como dizia Montaigne nos seus Ensaios, “as leis são obedecidas não por serem justas, mas porque são leis: é o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro...” Como diz Derrida, “a justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. As leis não são justas enquanto tais. Não se lhes obedece porque sejam justas, mas porque têm autoridade” . É daí que se segue a necessidade da desconstrução dos conceitos de Justiça, Direito, Ética e agregados.
4. Pensar Justiça e Mediação a partir da Hermenêutica
A Filosofia – como crítica e amor à sabedoria e não como erudição livresca - me ensinou algo da hermenêutica:
Hermes era um semi-deus mensageiro, transmutador, o intérprete da palavra divina que vinha de forma cifrada e precisava ser decifrada. Trata-se de um ato de sabedoria, pois não é uma tradução como quem passa por um dicionário. Não se pode confiar apenas na objetividade fática construída logicamente. Significa que nós somos intérpretes e não senhores da vida e da morte; não temos respostas finais; não vivemos num mundo positivista que segue estágios de evolução lógicos como gostaríamos. Se interpretamos, significa que o caráter subjetivo e cultural, ou até ideológico daquele que julga está presente no exercício e no ato. Estamos sempre tomando posição, já que o mundo é desigual; não podemos esconder isso em nome de uma objetividade que ainda não existe. Exemplo concreto: como os juízos (e juízes) conservadores têm julgado os sem-terra, sem-teto e outros sem... ? A hermenêutica ensina o poder da tradição e das comunidades de cultura como sabedoria, que vivem de algum modo em nosso entorno e dentro de nós. Uma comunidade que perde a história, sua tradição, os ensinamentos dos
antepassados, o lastro cultural de vivências comunitárias e de como viver a vida, uma tal comunidade pode desestruturar sua estabilidade e aumentar o conflito. Recuperar a tradição não é tradicionalismo, nem cultura de folclore no sentido superficial, nem quer dizer que há uma tradição pura ou bem melhor que a outra. A tradição é o que nos habita, nos modos de organização coletiva, medicina natural e popular, de gastronomias típicas, de agricultura orgânica e familiar, no modo de lidar com os recursos naturais, no modo de cultivar-cultura familiar, social, religiosa. Dentro disso está o senso de justiça e os conseqüentes modos de resolução de conflitos dentro de uma comunidade. Neste sentido, o papel dos anciãos e dos líderes de todo tipo sempre foi essencial nas várias tradições. Por que elas permanecem ? Porque resgatar elementos das mesmas é opção exclusivamente nossa. É uma escolha que começa a reaparecer no cenário social. Outra palavra-chave numa aproximação hermenêutica do tema é: a historicidade, ligada à tradição. Estamos dentro de um presente dinâmico, dentro do tempo, e é preciso leva-lo a sério. Neste sentido, como podemos ter leis fixas e a-temporais ? As situações mudam e mudamos junto.
Considerar a historicidade é considerar o caráter interpretativo de cada momento, mesmo que tenhamos parâmetros pré-traçados, códigos e normas determinadas . Um outro conceito é o de linguagem e dia-logos. Precisamos reinterpretar o conceito caro de Razão. Logos vem de palavra, antes que razão e calculabilidade; e é palavra dita e cambiada (dia-logos). Significa que as verdades são dialeticamente produzidas e aceitas; não são universais e prontas e a-históricas, e da cabeça de alguém ou de uma autoridade fora da comunidade. O homem é um ser
ontologicamente de linguagem. Não é só porque fala. Mas porque se caracteriza como humano pela linguagem – que é produção de sentido, cultura, arte, gesto, corpo, sinais, escrita, olhar e uma infinidade de formas de relação entre sujeitos e com o ambiente. Tarefa essencial da mediação e da JR é restituir a comunidade à palavra, ao empoderamento da palavra, que traduz sempre relação/embate social. O olhar filosófico desse tipo pode nos orientar a re-significar os conceitos, suas trajetórias, e vermos o que foi perdido e o que pode ser incorporado diante dos novos tempos.
4.1. Re-significação conceitual e histórica
Ao refletir sobre as práticas da justiça formal - essencialmente retributiva e punitiva - a partir de uma ética baseada na inclusão, no diálogo e na responsabilidade social, o paradigma da Justiça Restaurativa promove um conceito de democracia ativa que empodera individuos e comunidades para a pacificação de conflitos de forma a interromper as cadeias de reverberação da violência. (Leoberto N. Brancher) O entendimento profundo do que está em jogo quando se coloca uma outra noção de encontro humano, sustentadora de práticas de mediação e de renovada visão de Justiça, agora restaurativa, comunitária e humanista, tal exige uma retomada de conceitos-chaves envolvidos, a começar pela idéia do que seja justiça. Esta passou a depender essencialmente de uma tradição com forças sociais e econômicas dominantes, que passa a legislar, institucionalizar e executar com base em outra visão de autoridade. Entre autoridade e autoritarismo há um passo escorregadio. A instituição Justiça como tal é coisa nova na história. Não que as antigas comunidades não tivessem suas regras, modelos de conduta, na verdade seus ethos – seu fazer-se morada, seu co-habitar. Contudo, seus modelos de autoridade no ocidente grego-romano-europeu tenderam a forte hierarquização, co-validada pela noção da autoridade divina concedida; a “César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Trata-se aqui não do modus vivendi cristão dos inícios do cristianismo, mas da sua entrada na esfera romana, onde os modelos de hierarquização, autoridade e justiça são muito diferentes. Se pesquisarmos, podemos dizer que o cristianismo primitivo era essencialmente restaurativo, comunitário, socializante. Enquanto na esfera Imperial romana temos o ideário do Si vis pacem para bellum (se queres a paz prepara a guerra), no ideário cristão antigo temos o amor ao próximo, até mesmo o dar a outra face. A noção de amor como caritas e ágape, caridade amorosa e comunhão amorosa são os blocos humanísticos essenciais do cristianismo, o que no fundo é uma grande lição de como viver
em sociedade. Não se tratam apenas de ovelhas, não se trata de perdão barato. O exemplo do próprio mestre do cristianismo é lapidar: foi necessário expulsar vendilhões dos templos, enfrentar o farisaísmo, confrontar o poder, com a estratégia da não-violência, quase dois mil anos antes de Gandhi. Ousou-se dizer: eu não vim trazer a paz, mas a espada. Palavras de Jesus que merecem certamente interpretação e contextualização, mas não desvios. Em todo caso, é evidente o não-conformismo, o papel de desconstrução de uma violência primitiva estruturada / empoderada em instituições milenares, em nome de outra ação, de outra liberdade social.
Praticar Justiça não quer dizer renegar o conflito, mas, ousaria dizer, colocá-lo em primeiro plano, quando compreendo que nós estamos num plano (base) em que - há primeiramente e antes de qualquer essência racionalizável – há a alteridade, o desconhecido prévio ao conhecido, o outro como outro irredutível. O cristianismo tornado vitimização, bode expiatório e sublimação psíquico-social não esgota o movimento e a mensagem e a vida do seu autor. Trata-se pois de re-significar também o nosso cristianismo, e sua relação (e contaminação) sofrida na tradição dos impérios no ocidente, e nos modelos institucionais que se lhe conjugaram e inclusive substituíram, pois a autoridade agora é toda terrena e não mais divina. A substituição é bem
vista simbolicamente nos países cristãos, magistrados sacerdotais, rituais de Estado, as nomeações, as iniciações, e os altares todos ali, apenas re-nomeados. Nada mais sagrado, nada mais profano. Re-significar a justiça, requer compreender modelos diversos e épocas diversas e modos diversos de lidar com autoridade, poder, tradição e socialização, e o papel do Estado certamente. Quando alguém diz que “vai à Justiça”, “colocar na Justiça”, falando em processar alguém, traz à mente o histórico da institucionalização e empoderamento da Instituição Justiça – que fala (e falha tb.!) agora em nome do ser e do fazer justiça com base em procedimentos secularizados, não mais religiosos, comunitários, ou indígenas. Minha idéia não é opor romanticamente um modelo ao outro, pois é uma estratégia que se enfraquece, mas alargar a compreensão social da justiça-violência, de modo que se abram os grandes campos ocultos e vácuos do fazer justiça, com processos de mediação, restauração, todos mais diretamente ligados ao grande campo da interação social conflitivo-pacífica – seara da alteridade. A JR deve
considerar o fato do que significa implantar um processo de equilíbrio de justiça social e inter-humana ideal num contexto de grande disparidade sócio-econômica, real. Não digo que a estratégia marxista do acirramento de contradições traduzidas apenas em rupturas institucionais radicais seja o caso. Não podemos esquecer que, ricos e pobres, nos encontramos na fome do (inter)humano, do Outro, tanto quanto a do pão. Trata-se de traduzir ações
preventivas e restaurativas, ou como Dominic Barther chama com a Comunicação Não-Violenta (CNV), uma ética aplicada à JR, dentro de um campo de tensões permanentes, onde a estratégia não está pronta, mas a luz orientadora vislumbramos: ação de não-violência. Sim, se não podemos bater num rosto com a mão também não devemos passar a mesma sobre a cabeça do fulano. Temos o Sim e temos o Não. Muitos nãos precisamos dizer ao que nos é oferecido e tentado na jornada da vida dominada pela visão da violência e da mercantilização; em todo
caso, o SIM, concorde à vida, com-cordis, com o coração, sim ao que é o sentido primeiro que nos une, na diferença.
5. Questionamento dos limites da visão de separatividade: o papel da inseparatividade social
Trata-se aqui da compreensão sistêmico-complexa da realidade social. E da compreensão da subjetividade como imbricação .
A idéia do sujeito individual autônomo e separado pelo corpo dos outros corpos e da natureza e da destinação social vem de uma visão cartesiana , separativa, fragmentária, localizada e apoiada uma filosofia racionalista-idealista, numa física clássica e numa política liberal, liberdade individual intocável – calcada na propriedade privada. No Direito, isso entra no Direito Liberal Moderno, com base em autores como Kant e Hegel por exemplo, onde se abstrai das condições materiais sociais concretas dos parceiros em nome de uma universalidade abstrata de direitos. Essa era de algum modo a crítica de Marx ao Idealismo e ao Direito burguês. Numa compreensão ética sistêmica radical, começamos a entender a afirmação de Dostoiewski: somos responsáveis por tudo e por todos, e eu mais ainda. O conceito de valor, no sentido econômico amplo, é um bom exemplo que às vezes passa desapercebido, o fato de que o dinheiro traduz valores referentes a uma interação social dinâmica e muitas vezes penosa para muitos seres, e um uso dos recursos que na verdade cada vez mais não podem ser reduzidos à propriedade individual – pensemos nas águas, nos ares, nas terras, nos vegetais... De onde provém o
direito de possuí-los e usá-los ? O que significa acumulação de capital num mundo de privações e limitações de toda ordem ? A questão agora é: até onde o Direito e a Instituição Justiça e seus operadores, e assim o Estado, enfim, toda esta “seara”, aponta para a realização verdadeira e profunda da Justiça pautada na ética da alteridade e no sistema social, e até onde ele traduz um aparato burocrático e aristocrático Liberal ?
Numa visão interdependente, que deve acompanhar a Justiça, é preciso investigar mais a fundo a dimensão social e sistêmica das ações e violações e do sistema de necessidades. A sociedade move-se como que por ações-reações complexas, para além da causalidade linear simples que opera na dimensão cartesiana (S-O) da separatividade. Em nome da objetividade dos fatos jurídicos, a tendência foi o reducionismo objetivista no espectro de dimensões das relações/conflitos humanos. Há um ganho utilitário por um lado, mas há uma perda de compreensão e atuação no todo social. Podemos ver isso nos elementos cristalizadores da situação conflitiva e passível de punição:
1.Sujeito e responsável individual pela ação
2. Ação palpável/explicitável e localizável;
3. Sujeito passivo/paciente da ação, ofendido.
As ações são inseridas no sistema institucional: sistema de penalidades; Legislação, Direito específico ao caso.
Neste momento tornam-se sujeitos/objetos, mas o âmbito e o sistema de sua conflituosidade tendem a ser excluídos, reduzidos apenas aos fatos objetiváveis que serão medidos/encaixados à normatividade, à Lei. Outra questão importante acoplada: a legitimação do Direito enquanto Justiça não poderia colocar seu peso mais no procedimento do que no conteúdo e contexto; a burocratização caminha junta com as formalidades e procedimentos, numa rede interminável de intervenções. É no conteúdo e mérito fundante onde entraria a ética da alteridade, e a preferência pela Justiça Social antes que pela Justiça Liberal, por exemplo. Contudo, através dos
escaninhos procedimentais muitos criminosos ricos e engravatados escapam, e os excluídos juridicamente são dilapidados.
5.1. A visão sistêmico-complexa e a Justiça Restaurativa
“As abordagens restaurativas são importantes mesmo quando um ofensor não tenha sido preso ou quando uma parte não deseja ou não pode participar do encontro. Portanto, as abordagens restaurativas não se restringem apenas aos encontros.” (H. Zehr)
Trazemos aqui o exemplo da Justiça Restaurativa na medida em que esta visa o concerto ético e a restauração inter-humana antes que a punição e retribuição penal; além do mais, seu entendimento é sempre sistêmico. Tal sugestão é interessante na medida em que numa visão sistêmica, a mudança de um fator, ou de uma mentalidade pessoal, tem o poder sutil de mudar outras visões, numa escala de reverberação de causalidade não objetivável. Filosoficamente, grandes religiões perceberam a natureza associativa e vinculante da mente humana, já que habita em paisagem social, familiar-comunitária. O que significa dizer que vivemos em constelações que nos atingem, desde onde atuamos. O exemplo que trago é o do trabalho de constelação familiar (ou terapia sistêmica fenomenológica), onde a pessoa consegue trabalhar - a partir de si mesma mas dentro de um grupo terapêutico - aspectos vinculados ao seu meio familiar e de convivência; há o pressuposto de que carregamos a família e até outras pessoas dentro de nós. O efeito terapêutico sobre um tem influência (como na rede quântica) sobre outros na complexidade, na rede social .
Isso pode ser estendido à sociedade. Significa que uma gama de ações-reações negativas e produtoras de violência giram na economia social, fazendo vítimas independentemente da causalidade simples e do tempo presente. Do mesmo modo, giram ações positivas e altruístas, que promovem a vida e conseguem erguer sujeitos dilapidados. As próprias formas de proteção dos ricos são, paradoxalmente, geradoras de medo e de afastamento destes do corpo social, ficando restritos a grupos pequenos de convivência, em geral grupos de iguais, o que não
deixa de ser gerador de solidão.
A sociedade humana é ontologicamente dialógica – dia-logos - atravessada pela palavra. A Justiça no modelo restaurativo encontra apoio na palavra-sentido (logos), ao trazer à tona – aspecto fenomenológico – o que do não-dito pode e deve ser expresso, de modo que a pessoa seja ouvida. No entanto, o não-dito da complexidade como rede sistêmica de relação social baseada no afeto-afecção, na emoção-amor (que inclui o ódio e seus correlatos) nunca será alcançado pela racionalização. Há uma vivência inter-humana em jogo que acontece dentro
de nós por outros meios. Os seres humanos não são objetivos e funcionais como algum sistema funcional possa querer, pois habitamos a alteridade e ao mesmo tempo sistemas complexos. Não obstante, todo dano é relativo a uma comunidade, e portanto, a Justiça no modelo restaurativo prega que ela deve envolver-se na restauração. Daí as teses antigas de restauração do social atingido: “1. O crime é uma violação de pessoas e de relacionamentos
interpessoais. 2. Violações criam obrigações. 3. A obrigação principal é corrigir o malfeito”. Essa idéia resgata antigos valores, como quer H. Zehr, e pressupõe a visão sistêmica fundante do social.
“O problema do crime, nessa visão global, é que ele representa uma ferida na comunidade, uma ruptura na cadeia de relacionamentos. O crime representa relacionamentos danificados. De fato, relacionamentos danificados são tanto a causa como o efeito de um crime. Muitas tradições têm ditados que expressam que o prejuízo de um é o prejuízo de todos. Um dano como um crime provoca a ruptura de toda a rede. Além disso, o malfeito é geralmente um sintoma de que alguma coisa está fora do equilíbrio na rede.
Inter-relacionamentos implicam em mútuas obrigações e responsabilidades. Não surpreende, então, que essa visão do malfeito enfatize a importância de fazer reparos ou “corrigir”. Na verdade, fazer reparos dos erros é uma obrigação. Enquanto a ênfase inicial pode outros – especialmente a comunidade como um todo – possam ter responsabilidades também.”
A busca de uma luz teórica na ética da alteridade - em especial pela noção de Rosto e responsabilidade radical - para a Justiça Restaurativa e também para as visões alternativas de Justiça é uma proposição desafiadora e muito profícua, na medida em que a meta destes campos é a práxis justa e a promoção de ações de não-violência num contexto de conflito que não pode ser escamoteado idealisticamente.
Concluindo: Ética da Alteridade e os fundamentos de Justiça
É certo que ser ético, na prática, é uma escolha. Não obstante, em termos de fundamentos, não temos escolha.
Todo nosso ser é voltado para outrem e para o ethos, seja eu um santo, seja eu um Hitler. Talvez seja difícil de entender isso à primeira vista, quanto mais aceitar. Trata-se, pois, como vimos, da compreensão da não dominação radical da alteridade e do outro. Todo domínio egolátrico – autocentramento idealizado no Eu - é fadado ao fracasso; quando mato o outro (e posso matar de diversas formas) não tenho mais a relação com um outro (alter), mas com um objeto, um simulacro, talvez um espectro de mim mesmo, solitário e vazio. Algo escapa. Dá-se e se
retira: Rosto... A ética da alteridade inspirada em E. Levinas, para além de pregação moral, simplesmente fenomenaliza a compreensão da dívida radical que significa a afirmação do próprio Ego em meio à comunidade, e mais ainda em meio à dilapidação dos excluídos . A subjetividade é mais profunda do que a pretensa identidade racional autônoma, livre e empoderada (Ter Ser em seu Poder). No fundo, eu não delibero ou evito a alteridade, ela me toma e me possibilita e impossibilita de cima a baixo. Ex. meu corpo, envelhecimento, limites, dor, morte, gozo,
amor, natureza, bebê, inconsciente. “Sou responsável até pela irresponsabilidade do outro” “Todos somos responsáveis, e eu mais ainda” (Dostoievski) Cabe pensar radicalmente o que implica a subjetividade e o ser sujeito numa visão da ética da alteridade. Em nossa vida podemos ver que quanto mais passam os anos, tendemos a ter mais calma, mas paciência, mais compreensão. É também o tempo da possibilidade de mais amar que ser amado, saber perdoar, ouvir, dar de si sem necessariamente buscar gratificação pessoal, enfim, cuidar. A natureza
parece que nos brindou com a sabedoria na maturidade. Se compreendermos assim, veremos um sentido sábio na vida, veremos o Rosto, e que estamos em processo de crescimento; tal crescimento é também de caráter espiritual (não necessariamente religioso), como mostrou C.G. Jung ao apontar a importância deste aspecto no homem maduro. O homem maduro não vê o cuidado e o dar de si, o para outrem, como um sacrifício difícil, como perda; ele sabe que tem pouco a perder, pois consegue trabalhar melhor o apego pessoal e a egolatria. A tradição budista é também um bom exemplo disso. O sujeito maduro tem alegria no dar; ele entra na esfera da diaconia – serviço e prioridade do Outro. Isso não lhe impede de ter prazer; mas o seu prazer é celebração de vida que inclui a consideração real de outrem. Deste modo, o que pode ser Justiça para a ética da alteridade ? A prioridade do Outro antes do Eu, como ideal regulador. A questão é quem e o que é o Outro para mim. Numa situação egológica, o Outro entra como apêndice e objeto do eu. Ele o servo (em geral a serva), e Eu o Senhor. Justiça é o questionamento da Liberdade individual como primeira, como sentido primeiro da vida, ao mesmo tempo, é luta não-violenta pelos excluídos. Portanto, inclusão corajosa. Numa vida ético-sistêmico, a verdadeira liberdade vem da responsabilidade (res-pondere); falar a outrem, dar contas, cuidar de...
Justiça como dia-logos e escuta da alteridade
Em nossa jornada na vida, tendemos a criar identidades seguras, fixas, com respostas e ideologias, com poderes, saberes e autonomias quase sagradas. Mas sabemos que tal projeto identitário e de solidificação nunca se sustenta, pois tropeçamos, somos atingidos, envelhecemos, adoecemos e por fim morremos ingloriamente. Esse fato mostra a não dominação radical do homem sobre a vida em geral (corpo, coisas, natureza, outro, amor), apontando para o que em filosofia atual chamamos a alteridade radical, o fato de que somos frágeis, abertos, nãosabedores,
não-proprietários. Se temos uma instituição Justiça voltada para a defesa da propriedade, não significa que a mesma propicie bom empoderamento do que nos é próprio, ou seja, de o sujeito voltar-se à não-dominação radical da vida e à conseqüente necessidade enorme que temos dos outros, da comunidade, da cultura, da natureza, quando não dos aspectos espirituais.
Portanto, pensar Justiça como escuta-diálogo de alteridade é colocar num lugar mais apropriado o sentido social e de finitude de cada ser individual. Trata-se de propor uma escuta pessoal ao nosso grande e frágil ser que somos, com nossas inquietudes e nossos carmas (ações-reações), gerando emaranhamentos e conflitos, amor e dor, caminhando para a aceitação de si, peregrino, pergunta-dor, aberto, e sempre limitado em seu empoderamento.
Deste modo, não posso tomar simplesmente uma instituição como guardiã de meu ser, através da garantia de propriedade e direitos, mas colocar-me na dialética entre propriedade/autonomia e alteridade/finitude. Isso concretamente pode começar como a dis-posição ao dia-logos e à socialidade como generosidade. O logos significa originalmente palavra, sentido, depois traduzido como razão e estudo. No diálogo, não tenho a razão última de nada, não tenho a palavra final, sou dependente do jogo social, da dialética, e preciso saber jogar, saber viver. Não se trata, no dia-logos, de ganhar do outro, pois o sistema ganha-perde pode apenas produzir novas frustrações, ou vinganças. No dia-logos e na generosidade, literalmente, a palavra é atravessada, passamos a palavra, de ouvido em ouvido; e assim, damos algo, o tempo inteiro a vida é doação e serviço. Para isso funcionar, é preciso aprender a ouvir e a dar de si sem neuroses. Ouvir não é estar com os ouvidos abertos, mas com a obediência de coração. Ob-audere, ouvir a, ouvir para. Não se trata de ouvir e fazer pelo fato de uma lei externa e autoridade obrigar. Mas ouvir verdadeiramente é uma obediência positiva que não precisa concordar tal e qual com o outro; ela não é uma escravidão, pois é feita a partir de anseios profundos dos sujeitos humanos que são intersubjetivos no fulcro da alteridade. A incapacidade para o diálogo, tema caro à hermenêutica e às filosofias do diálogo, diz muito da incapacidade para ouvir. Por vezes, ouvir o outro e acolher é quase toda solução. Somos carentes de alguém que nos ouça. Ouvir verdadeiramente é raro, sem julgar previamente, compreendendo a fragilidade humana, que é sempre a minha também. Eis um dos grandes ensinamentos da Comunicação Não-violenta à serviço da mediação de conflitos e do diálogo. Temos, por conseguinte, um casamento perfeito desta base com os processos de mediação e restauração ética da Justiça Restaurativa, como apontamos. Neste sentido, fica claro que Justiça tem tudo a ver com ouvir, acolher, dar a cada um o que lhe cabe. Trata-se basicamente de incluir o outro em vez de reforçar a mentalidade da exclusão. Infelizmente, nosso mundo, por vezes mudo, ergueu barreiras ou verdadeiras divisões entre classes, raças e espaços. A mentalidade da exclusão tem um fundo protetor, mantenedor de uma
segurança, a mesma que atua na base dos racismos. É por isso que tais aspectos são tão encarnados nas sociedades ainda hoje. Vencer tais muros não é apenas uma questão de mudar de idéia. Exige Justiça – radical, como a ética da alteridade vai sugerir. A Liberdade torna-se posterior à Justiça, a saber: justiça em primeiro lugar é um auto-questionamento, até que ponto não estou excluindo, e até onde meu ser sujeito, minha ação no mundo, inclui. Até que ponto o mundo de poucos se sustenta. Muito grave pessoal e socialmente o egocentrismo, pois não
corresponde aos anseios profundos dos ethos comunitários; egoísmo é não saber ouvir, é não incluir, é não aceitar a diferença, é levantar ou corroborar muros. É aceitar o estado de coisas excludente. Apartheid social. Quando me relaciono com alguém apenas mediado no conceito e imagem que tenho dele, isso é fadado ao fracasso. O conceito é altamente controlável, mas mutável. Mas se vejo o outro com o ouvido-coração, percebendo no face-a-face mais do que a idéia (imagem) que tenho dele, eis o Rosto, o singular inviolável do humano, como bem demonstra E. Levinas.
Em tudo isso, não se trata de uma pregação de ser bonzinho ou ingênuo. Uma justiça que restaura ou que defende o excluído pode também agir com rigor, mas com base na compaixão ou não-violência ativa, não na raiva e na punição. O sujeito aqui é movido pela visão da fragilidade do outro seja ele quem for, do sofrimento que o invade independente de ele ser ou não culpado de algo. Aqui serve a expulsão dos vendilhões do templo em Jerusalém, por Jesus; ou ainda a figura do Buda verde, o Buda da ação irada que combate a violência e promove o Bem. Ou a
luta pela Libertação na América Latina e a busca de “um outro mundo é possível”. Isso nos lembra a estratégia da ação não-violenta, aplicando a satyagraha contra toda opressão, tão popularizada por figuras como Gandhi; tudo isso a traduzir bem, a seu modo, éticas da alteridade exigindo a reconsideração da idéia de Justiça.
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